22/08/2023
Cotidiano

Entre “casas” e vidas

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O “pacote habitacional” lançado pelo governo federal na última semana pretende construir um milhão de casas e combater o déficit habitacional no país. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) acredita que esta iniciativa é uma importante medida para combater a crise econômica que preocupa o país, mas que precisa ser aperfeiçoada para não permitir que 60 milhões de pessoas sejam excluídas dos benefícios trazidos pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.
Para o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, a iniciativa do governo federal representa uma ousada estratégia de combate ao déficit habitacional e aos efeitos da crise econômica, mas que o Programa, para que possa atingir os objetivos propostos, precisa ser aperfeiçoado no sentido de garantir o acesso de todos os municípios.
O alerta da CNM se deve ao fato de que os pré-requisitos para o acesso aos recursos do pacote, divulgados pelo governo federal e pela Caixa Econômica, priorizam as capitais, as regiões metropolitanas e os municípios com população acima de 100 mil habitantes – o equivalente a 573 municípios e, em condições especiais, os 254 municípios com população entre 50 a 100 mil habitantes.
Se esta é uma das preocupações da Confederação, em Guarapuava o receio é outro. Às vésperas de mais um ano eleitoral, em que pese a iniciativa do Governo Lula para enfrentar os “fantasmas” da crise e da falta de moradia, há o temor de que as mil casas anunciadas pela secretária municipal de Habitação e Urbanismo, Ana Lucia Massaro Tossin, durante a semana, não passem de apenas mais um sopro para embalar o sonho de milhares de famílias pobres que engrossam o bolsão da miséria na periferia da cidade.
Para que o Governo Federal priorize os projetos a ele encaminhados exige-se que o município, como valor da contrapartida financeira, doe terrenos, construa a infra-estrutura básica e promova a desoneração fiscal. A secretária de Habitação de Guarapuava se cala sobre esse assunto e se limita a responder por intermédio de e-mail encaminhado pela Assessoria de Comunicação que “o Governo Federal disponibilizou uma verba para que a Secretaria Municipal de Habitação e Urbanismo desenvolva o Plano Local de Habitação de Interesse Social, que já está em análise na Caixa Econômica Federal, para em seguida entrar em processo licitatório. Será escolhida uma empresa que realizará o serviço de levantamento dos dados habitacionais de Guarapuava. Segundo a previsão da Secretaria, os dados estarão concluídos em outubro deste ano”. A secretária está no cargo há cinco anos, tempo suficiente para saber que assim como o novo programa do Governo Federal, outros programas habitacionais necessitam da execução do Plano de Habitação de Interesse Social, o PLHIS, que para ser desenvolvido precisa da instituição do Fundo de Habitação de Interesse Social (FEHIS) e da criação do Conselho Gestor já criado legalmente, mas sem a nomeação dos membros.
Essa exigência do Ministério das Cidades prevê a elaboração do Plano citado pela secretária e tem que identificar no município as áreas e as populações que apresentam perfis socioeconômicos e demográficos. Em 2008 a Prefeitura recebeu R$ 60 mil para a execução desse Plano.
Se ainda não há um cadastro oficial, há informações, porém, da existência de uma listagem na própria Habitação que soma mais de 15 mil famílias cadastradas à espera de uma casa.
“Estou cansada de ir lá sempre e só me dizem que é para ter paciência que um dia eu ganho a minha casa na Rua Augusto Marcondes”, conforma-se dona Natália Dias, 56 anos, que mora nos fundos da casa da filha, no Bairro Xarquinho.
Assim como dona Natália, outros milhares de agregados e de filhos que se casam e continuando morando com os pais mascaram os números do déficit habitacional. A Fundação João Pinheiro, que embasa o Ministério das Cidades, mostra que esse déficit na cidade é de apenas 3,7 mil. É a chamada conurbação, ou seja, uma extensa área urbana composta por cidades e vilarejos que foram surgindo e se desenvolvendo um ao lado do outro, formando um conjunto.
Com o aumento da urbanização, a área das cidades se amplia, fazendo com que os limites entre municípios vizinhos – ou entre um município e seus subúrbios – se confundam, compondo grandes manchas urbanas.
Há décadas sem lotes ou casas
Caminhar por favelas, “ocupações”, núcleos habitacionais como o do Jordão, que estampa esgoto a céu aberto, é fazer saltar aos olhos cenas que transpõem os cartões-postais e nos mostram projetos urbanísticos excludentes da cidade. Mero retrato de que a questão habitacional em Guarapuava está relegado a sei lá qual plano.
O que se sabe oficiosamente, já que não há qualquer informação oficial, é que há mais de 10 anos não se produz novos lotes ou habitações em Guarapuava. Após a construção do Residencial 2000 não houve mais investimentos no setor, para um déficit de mais de 3 mil unidades e uma demanda anual de no mínimo 150 casas, por causa do crescimento demográfico. As intervenções tanto do Estado como do Município não se concretizam. A COHAPAR tem em suas mãos, doados pelo Município em 2003, 22 lotes na Avenida Aragão de Mattos Leão, no Jardim das Américas, 360 lotes de uma primeira etapa (entre as casas) e mais 302 de uma segunda etapa no Residencial 2000, na parte de baixo. Lembrando que o Residencial 2000 necessita para as construções destas casas, equipamentos públicos como creche e ampliação da escola, além da ampliação do acesso da Rua XV e asfaltamento de suas ruas. Recursos, porém, para a construção da creche no 2000, no Jordão e no Campo Velho, além da ampliação da XV já foram rejeitados pelo prefeito Fernando Ribas Carli por se tratar de financiamentos.
Segundo o Tratado dos Direitos Econômicos e Sociais da ONU, adotado em 1966, passando a vigorar somente em 1976 e ratificado no Brasil em 1992, moradia é um direito humano. O não cumprimento desse direito por falta de políticas públicas, significa uma violação aos direitos humanos e dos cidadãos.
“Há oito anos tenho cadastro na Prefeitura e sou obrigada a morar na invasão como favelada, já que é assim que nos chamam”, diz Mara Ribeiro, 26 anos. A auto-denominação da mãe de três filhas, da mulher que luta para sobreviver em meio a um cenário caótico, discriminado e excludente, não está longe de ser verdadeira. Afinal, não atribuímos ao “favelado” a condição de associá-lo à pobreza, à idéia de caos, de sujeira, de coisa feia, de tudo aquilo que rejeitamos?
“Há anos espero que o prefeito cumpra a promessa de nos colocar numa casa no Xarquinho”, espera Mara, sob o clamor da filha de seis anos, Tainá. “Se Deus quiser”, roga a criança com as mãos arrumadas em posição de louvor.
Realmente, o Município está construindo 133 casas no Xarquinho, com recursos do Governo Federal (R$ 2, 2 milhões) a fundo perdido, com contrapartida de somente 20% do município – que é basicamente o terreno -, ali bem ao lado da Escola Total. Ocorre que as famílias que irão receber as casas apenas três estão construídas – , já estão na ocupação da própria área há cerca de 10 anos, não resolvendo, portanto, a problemática do local, além da promessa de abrigar pessoas da “ocupação” nos fundos do CAIC, gerando conflitos.
Pior do que esta situação somente o distrito de Entre Rios, onde desde 1998 nenhuma ação habitacional é realizada. Lá, a exclusão social é que separa a gigante Cooperativa Agrária e seu complexo industrial da miséria. Mais de 150 famílias estão em áreas “ocupadas”, tanto nos fundos do Projeto Projeção como no banhado do Núcleo, sem acesso à infra-estrutura básica, sem endereço, sem dignidade.
Com a ampliação da Agromalte o problema social tende a se agravar, pois a indústria vai gerar mais empregos, mas faltará ainda mais moradia.

Regularizar e urbanizar também é preciso

Entendemos que o problema não será resolvido somente com construção de casas. Urbanizar e regularizar as áreas já ocupadas é essencial.
Há mais de cinco anos a dona-de-casa Maria Aparecida Moura, de uma das áreas ribeirinhas próximas à Avenida Aragão de Mattos Leão (ex-Cascavel) sonha em morar numa casa de tijolo, de preferência que não seja no local onde mora com seus cinco filhos. “Quando chove alaga tudo”, reclama.
Assim como dona Maria, outras 300 famílias foram retiradas de áreas de alagamentos e transferidas para o Paz e Bem na primeira gestão do ex-prefeito Vitor Hugo Burko. O local possui 477 lotes. Mas quando uma família sai da área alagadiça outra já está na disputa para entrar.
“Eu morava ali na Sapolândia e há quase 13 anos moro aqui. Ganhamos o lote da Prefeitura e com muito custo construímos a nossa casa”, diz o catador de reciclável Ermelino Meira Pinto. Ele está enganado. O lote não é dele. A área onde está o Paz e Bem ainda pertence à União, embora o loteamento tenha sido criado em 1988 para regularização fundiária de uma ocupação na Rua Judith Bastos. Esse problema afeta cerca de cinco indústrias nos fundos do loteamento, já nas margens da BR-277, cujas áreas também foram “doadas” pela Prefeitura.
Deitar o olhar pelas ocupações, pelas favelas, pelo aglomerado de casas e de pessoas que se sobrepõem à miséria crescente é ter à nossa frente realidades e desafios conhecidos: pobreza, segregação espacial, precariedade e vulnerabilidade frente aos desastres que seguimos gerando, como lixo que alimenta seres humanos. Paradoxalmente, percebemos que há políticos que abandonam sua responsabilidade no planejamento urbano-territorial; em contrapartida, alentam e favorecem apropriações privadas dos espaços e especulação imobiliária sem restrições, uma vez que desconhecem e até criminalizam os esforços individuais e coletivos para dispor de um teto e um habitat onde morar, como diz Lorena Zárate, no artigo “Rumo a programas e projetos concretos”.
É que a realidade de governante é muito distante da triste realidade da parcela dos miseráveis que são governados.
É triste perceber que a cidade-mercadoria se impõe sobre a cidade-direito, e ver que só têm direitos aqueles que podem pagar.

Minha casa, Minha vida

O Governo federal está realmente disponibilizando no Programa Minha Casa Minha Vida, investimentos na ordem de R$ 34 bilhões para construção de 1 milhão de casas. Assim, proporcionalmente pela população brasileira, Guarapuava teria direito a no mínimo 850 casas.
Mas para se construir casas é preciso ter a base que são os lotes, sem eles nenhuma obra arquitetônica é possível. Segundo dados técnicos, cada alqueire de terra, o equivalente a 24,2 mil metros quadrados, comporta 50 casas. Para as mil casas pretendidas pelo prefeito, seriam necessários 480 mil metros quadrados de área. Pode-se utilizar os lotes da Cohapar que somam 384 lotes, e o restante? Não deveríamos estar desapropriando ou buscando alternativas para não perdemos o bonde?
A veículos de comunicação da cidade, Ana Lucia disse que tem o mapa com os terrenos pertencentes ao município e que estariam disponíveis para o programa federal. Disse também que o total dessas áreas em vários pontos da cidade, não pode ser divulgado porque “algumas informações podem estar um pouco desatualizadas. Esta semana vamos passar nos imóveis e revisar o mapeamento, para então divulgar”. Insisto, a secretária está no cargo há cinco anos.
O Município, além de não utilizar os instrumentos de política pública, previstos no Plano Diretor como o Imposto Progressivo, entre outros, dispensou uma área que solucionaria o problema da habitação na cidade. Em 2007, quando o Exército divulgou o interesse de permutar a área da Vila Santana, que possui justamente os 20 alqueires (480 mil metros quadrados) e que sozinha poderia abrigar 850 casas, Carli não quis.
Outra situação é da área do centro, onde a União tem 350 mil metros quadrados, mas a área total é de 800 mil metros quadrados, pois foi desapropriada de Ilco Zacalusni em 1.967, mas até hoje o Exército não tem a documen-tação.
Segundo o comandante do 26º GAC, tenente-coronel Cesar Augusto Rosa de Araújo, as áreas estavam em processo de negociação até 2007 na chamada “transação patrimonial”, mas acabou retornando porque as empresas interessadas voltaram atrás. Segundo o comandante, a União não recebe dinheiro, mas benfeitorias terão de ser feitas em Guarapuava ou em outro lugar do país. Só após a conclusão desse compromisso é que o “com-prador” receberá a escritura da área.

Cristina Esteche

Jornalista

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